Dignitate

Por eles. Para eles. Com eles

De cara com o passado

Elber Macharetti

07/04/2023

Fim de ano. Cheguei na minha cidade de origem. Tempo de rever família e amigos. Clima de Natal no ar. Casas e lojas enfeitadas. Soam as canções natalinas de todos os anos. “Paz na terra a todos os homens”.

Caminhando pelas ruas da minha cidade, dou de cara com o meu passado. Um passado que gostaria de apagar, se pudesse. Mas não é possível. Vejo a pessoa que me abusou, quando eu era criança. Já fazia quase 30 anos, que não a via. Ao vê-la, meu primeiro impulso é pensar em atravessar a rua. Ir para o outro lado da calçada. Mas decido avançar. Passo ao seu lado dela e não olho. Pensei que ia sentir raiva, mas não.

Nesse momento, um pensamento martela a minha cabeça: “Será que eu enlouqueci? Será que eu inventei tudo?” Engulo o choro, respiro fundo e sigo caminhando.

Ao longo dos anos, tendo encontrado tantas outras vítimas de abuso, sempre escuto essas duas frases inúmeras vezes. Seja nas falas de sobreviventes. Seja na boca das vítimas de algum tipo de violência ou exploração. Sempre as mesmas: “Será que eu enlouqueci? Será que eu inventei tudo?”

Não importa em que fase da vida estivermos. Seja em fases difíceis ou em fases felizes, essas frases sempre reaparecem para nos torturar. Não importa se a pessoa está no início do processo de se perceber como uma vítima de abuso. Não importa se ela já é uma sobrevivente com anos de liberdade. Essas frases e a sensação de que podem ter inventado tudo, continuam ali.

Depois de que uma simples caminhada pela minha cidade, me lançou inesperadamente numa parte tão dolorosa do meu passado, eu repeti para mim, as mesmas palavras que uso para aconselhar as vítimas. Vasculhei as minhas memórias e encontrei as cicatrizes das feridas que me fizeram. Me lembrei da dor que senti. Tudo tão vívido e real. Por isso pude repetir: “Eu não enlouqueci! Eu não inventei! Tudo isso aconteceu, mas já não define a minha vida!”

Não vou mentir. Sei que esse exercício de vasculhar o passado, não é nada confortável. Mas de vez em quando, ele é necessário. Porque ao lembramos da dor, reforçamos as barreiras diante de quem ou daquilo que nos feriu.

Minha cidade. Fim de ano. Clima de Natal. Eu de cara com um passado. Gostaria que não houvesse acontecido. Lembranças. Feridas. Dores. Cicatrizes. Canções natalinas. “Paz na terra a todos os homens”. Paz pra mim também. Mergulho até me submergir totalmente na graça de Deus. Outra vez respiro fundo. Vou continuar caminhando.

Se você acha que pode ter encontrado uma vítima de abuso sexual, exploração infantil, ou alguns desses sinais se aplicam a você, entre em contato pelo DISQUE 100 e forneça o máximo de informações possíveis.

SE VOCÊ TEM RAZÕES PARA ACREDITAR QUE UMA PESSOA CONHECIDA ESTÁ EM PERIGO IMEDIATO, LIGUE 190.

VOCÊ PODE SALVAR A VIDA DE ALGUÉM.