Dignitate

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Catar 2022 - A Copa da Morte

Elber Costa Macharetti

18/11/2022

No início de 2021, Rada Chinna Ramoji, imigrante indiano, disse à sua esposa que por causa da Covid-19, havia pouca gente trabalhando. De acordo com ela Em janeiro, faltava mão de obra e ele começou a trabalhar em turnos de 12 horas, às vezes, de até 16 horas diárias. Ele estava sempre acordado. De vez quando, ele dizia o quão duro era trabalhar de faxineiro, da falta de sono e do quanto lhe doía ter que ficar acordado o tempo todo, mas estava saudável. Rada morreu em algum momento entre os dias 24 e 25 de janeiro. Me disseram que ele infartou enquanto dormia, de manhã, diz a viúva. Rada tinha 41 anos de idade.

Infelizmente a morte de Rada não é um fato isolado. De acordo com o jornal inglês The Guardian, desde que a FIFA concedeu ao Catar em 2010, o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022, estima-se que em torno de 6500 trabalhadores perderam a vida, nos preparativos do evento, sobretudo na construção de estádios, estradas e hotéis. Embora esse número seja assustadoramente alto, é impossível saber exatamente o número de mortos, uma vez que o governo do país não divulga dados oficiais confiáveis.

Os trabalhadores, na maioria imigrantes de países mais pobres como Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka e Nepal, são obrigados a lidar com:

  • Temperaturas de até 50 graus
  • Jornadas de trabalho intermináveis
  • Escassas medidas de segurança
  • Quase nenhum dia de descanso
  • Retenção dos passaportes, por parte do empregador
  • Ameaça de expulsão do país, caso não aceitem as condições impostas
  • Impossibilidade de mudar de empresa
  • Condições insalubres nos alojamentos
  • Ausência de sindicatos.

Kafala

Ao conjunto de “condições trabalhistas”, descritas acima dá-se o nome de Kafala. A Kafala é o “sistema de trabalho” das empresas de vários países da península arábica, como o Catar. Ironicamente, kafala significa “garantias” em árabe, mas como é possível perceber, todas as garantias e direitos pertencem ao empregador.

É verdade que o governo catarí aprovou uma nova lei em 2017, concedendo mais direitos aos trabalhadores. Mas, apesar disso, um relatório da Anistia Internacional, datado de novembro de 2021, mostrou que os avanços nas condições trabalhistas estavam estancados e que, em muitos casos, houve a retomada das velhas práticas abusivas da kafala, especialmente em relação aos trabalhadores estrangeiros.

Mas se engana quem pensa que só os trabalhadores da construção civil sofrem com as péssimas condições de trabalho no país. O mesmo relatório destaca os abusos sofridos pelas empregadas domésticas. Muitas das mulheres que trabalham nas casas do Catar, trabalham mais de 18 horas por dia e nunca tem um dia de descanso. Algumas denunciaram também atrasos nos pagamentos, além dos maus tratos como insultos, tapas e cusparadas. Há também denúncias de abusos sexuais. Uma das mulheres disse: Me tratam como um cachorro. Outra delas, chamada Joy contou: A patroa começou a gritar com todas nós. Começou a cuspir e me deu um tapa. Antes também já tinha me dado um pontapé nas costas.

A Pior Propaganda do Mundo

Diante de tantas denúncias em relação aos abusos trabalhistas, causou espanto uma propaganda da Copa do Mundo, da cadeia holandesa de supermercados Jumbo. O anúncio, era de uma bolsa de compras do próprio mercado, que também funciona como um suéter sem mangas, e que pode ser usado pelos torcedores para assistirem aos jogos da Holanda na copa. O problema é que essa peça de publicidade, mostrava imagens de operários dançando alegremente em andaimes, num edifício em construção.

A repercussão foi tão negativa, que a Jumbo suspendeu a campanha publicitária imediatamente. A empresa disse: Percebemos agora que se pode ligar o nosso comercial às horríveis condições trabalhistas do Catar e essa nunca foi a nossa intenção. Lamentamos profundamente e oferecemos as nossas mais sinceras desculpas.

Sinais de Luto

Enquanto a comunidade futebolística internacional vive um “ambiente de festa” generalizado, é possível ver no “mundo da bola”, alguns poucos, mas relevantes sinais de protesto e porque não dizer, de luto.

A revista de futebol espanhola Panenka, trouxe pela primeira vez em sua história, uma capa totalmente negra, onde é possível ver o título “As sombras do mundial”. A reportagem principal da edição, não traz o perfil dos craques que brilharão nos gramados, mas sim, o perfil de trabalhadores que morreram nas construções, antes da bola começar a rolar.

Mas talvez a manifestação mais contundente, seja a da empresa Hummel, fornecedora de material esportivo da seleção dinamarquesa, uma das 32 participantes do mundial. A Hummel, praticamente “apagou’ o seu logotipo dos uniformes da Dinamarca. Em seu Instagram, a empresa disse: Não queremos ser visíveis durante um torneio que custou a vida de milhares de pessoas.

A empresa também desenhou e fabricou um terceiro uniforme. Além dos tradicionais uniformes vermelhos e brancos, a Dinamarca poderá entrar em campo nessa copa, com um uniforme totalmente negro (camisas, shorts e meiões). De acordo com a Hummel, esse é o uniforme do “luto”, como referência aos falecidos nas construções dos estádios: Queremos fazer uma declaração sobre o histórico do Catar em direitos humanos e seu tratamento aos trabalhadores imigrantes, que construíram os estádios do Mundial no país, explicou a empresa.

As Coisas Menos Importantes

O lendário treinador italiano Arrigo Sacchi, disse uma vez que o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes das nossas vidas.

Dentro de alguns dias, quando o juiz apitar o início da primeira partida do mundial, o futebol se fará onipresente nas vidas de bilhões de pessoas, ao redor do planeta. Mas por mais importante que seja, para muitos, uma Copa do Mundo, o futebol ainda é “uma das coisas menos importantes das nossas vidas”.

É importante lembrar que nenhum drible justificará os abusos e as humilhações sofridas pelos trabalhadores imigrantes no país do mundial. E principalmente que nenhum gol jamais compensará as milhares de vidas que foram ceifadas, nessa verdadeira “Copa da Morte”.

O desafio, para nós, é abrir a boca, não apenas para gritar “Gol”. Mas é sim, erguer a voz para clamar por justiça. Por isso, compartilhe essa informação para que mais pessoas saibam essa realidade. E se você conhecer alguém que vive uma situação semelhante (exploração e abusos não acontecem só no Catar), denuncie!